UNS VÃO À PRAIA. EU VOU AO MAR. PORQUE SOU DO MAR... O MAR, AOS QUE SÃO DO MAR: ODOYÁ! ODOYÁ!
Aquários de tubarões não inundam os meus pés. Só quero o vômito da minha própria vazante. Porque, sou Roberta Aymar...
TECIDO VIVO!


domingo, 27 de fevereiro de 2011

Ode Descontínua e Remota para Flauta e Oboé



Ode Descontínua e Remota para Flauta e Oboé 
De Ariana Para Dionísio
*Hilda Hilst*



I
É bom que seja assim, Dionisio, que não venhas.
Voz e vento apenas
Das coisas do lá fora
E sozinha supor
Que se estivesses dentro
Essa voz importante e esse vento
Das ramagens de fora
Eu jamais ouviria. Atento
Meu ouvido escutaria
O sumo do teu canto. Que não venhas, Dionísio.
Porque é melhor sonhar tua rudeza
E sorver reconquista a cada noite
Pensando: amanhã sim, virá.
E o tempo de amanhã será riqueza:
A cada noite, eu Ariana, preparando
Aroma e corpo. E o verso a cada noite
Se fazendo de tua sábia ausência.


II
Porque tu sabes que é de poesia
Minha vida secreta. Tu sabes, Dionísio,
Que a teu lado te amando,
Antes de ser mulher sou inteira poeta.
E que o teu corpo existe porque o meu
Sempre existiu cantando. Meu corpo, Dionísio,
É que move o grande corpo teu
Ainda que tu me vejas extrema e suplicante
Quando amanhece e me dizes adeus.


III
A minha Casa é gurdiã do meu corpo
E protetora de todas minhas ardências.
E transmuta em palavra
Paixão e veemência
E minha boca se faz fonte de prata
Ainda que eu grite à Casa que só existo
Para sorver a água da tua boca.
A minha Casa, Dionísio, te lamenta
E manda que eu te pergunte assim de frente:
À uma mulher que canta ensolarada
E que é sonora, múltipla, argonauta
Por que recusas amor e permanência?


IV
Por qu te amo
Deverias ao menos te deter
Um Instante
Como as pessoas fazem quando veem a penúria
Ou a chuva de granizo.
porque te amo
Deveria a teus olhos parecer
Uma outra Ariana
Não essa que te louva
A cada verso
Mas outra
Reverso de sua própria placidez
Escudo e crueldade a cada gesto.
Porque te amo, Dionísio,
É que me faço assim simultãnea
Madura, Adolescente
E por isso talvez
Te aborreças de mim.




Quando Beatriz e Caiana te perguntarem, Dionísio,
Se me amas, podes dizer que não.
Pouco me importa
Ser nada à sua volta, sombra, coisa esgarçada.
No entendimento de tua mãe e irmã.
A mim me importa
Dionísio, o que dizes deitado, ao meu ouvido
E o que dizes nem pode ser cantado
Porque é palavra de luta e despudor.
E no meu verso se faria injúria
E no meu quarto se faz verbo de amor.


VI
Três luas, Dionísio, não te vejo.
Três luas percorro a Casa, a minha,
E entre o pátio e a figueira
Converso e passeio com meus cães
E fingindo altivez digo à minha estrela
Essa que é inteira prata, dez mil sóis
Sirius pressaga
Que Ariana pode estar sozinha
Sem Dionísio, sem riqueza ou fama
Porque há dentro dela um sol maior:
Amor que se alimenta de uma chama
Movediça e lunada, mais luzente e alta
Quando tu, Dionísio, não estás.


VII
É lícito me dizeres que Manan, tua mulher
Virá à minha casa, para aprender comigo
Minha extensa e difícil dialética lírica?
Canção e libwrdade não se aprendem
Mas posso, encantada, se quiseres
Deitar-me com o amigo que escolheres
E ensinar á mulher e a ti, Dionísio
A eloquência da boca nos prazeres
E plantar no teu peito prodigiosa
Um ciúme venenoso e derradeiro.



VIII
Se Clódia desprezou Catulo
E teve Rufus, Quintius, Gelius
Inacius e Ravidus
Tu podes muito bem, Dionísio,
Ter mais cinco mulheres
E desprezar Ariana
Que é centelha e âncora
E refrescar tuas noites
Com teus amores breves.
Ariana e Catulo, luxuriantes
Pretendem eternidade, e a coisa breve
A alma dos poetas não inflama.
Nem é justo, Dionísio, pedires ao poeta
Que seja sempre terra o que é celeste
E que terrestre não seja o que é só terra.

 

IX
           “Conta-se que havia na China uma mulher
   belíssima que enlouquecia de amor todos
   os homens. Mas certa vez caiu nas
   profundezas de um lago e assustou os peixes.”

Tenho meditado e sofrido
Irmanada com esse corpo
E seu aquático jazigo
Pensando
Que se a mim não deram
Esplêndida beleza
Deram-me a garganta
Esplandecida: a palavra de ouro
A canção imantada
O sumarento gozo de cantar
Iluminada, ungida.
E te assustas do meu canto.
Tendo-me a mim
Preexistida e exata
Apenas tu, Dionísio, é que recusas
Ariana suspensa nas tuas águas.

 

X
Se todas as tuas noites fossem minhas
Eu te daria, Dionísio, a cada dia
Uma pequena caixa de palavras
Coisa que me foi dada, sigilosa
E com a dádiva nas mãos tu poderias
Compor incendiado a tua canção
E fazer de mim mesma, melodia.
Se todos os teus dias fossem meus
Eu te daria, Dionísio, a cada noite
O meu tempo lunar, transfigurado e rubro
E agudo se faria o gozo teu.






Zeca Baleiro musicando o texto de Hild Hilst  
Ode Descontínua e  Remota para Flauta e Oboé 
in
Júbilo Memória Noviciado da Paixão



Ode Descontínua e  Remota para Flauta e Oboé 
Texto de Hilda Hilst e Música de Zeca Baleiro


***

Ode Descontínua e Remota para Flauta e Oboé


A Inspiração no Mito

Ariadne e Dionísio


 Eugène Delacroix - Dionísio e Ariadne

Nenhum comentário:

Postar um comentário